quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Sereníssima

Eu agora que não sei
posso sair da sua vida
e rir
nua, sua, à toa.

Não devo satisfações,
não devo nada
nem a você
nem a ninguém.

Eu, agora que não sei,
não quero nem saber
o que pensam de mim:
passa fora!

Não compro, não pago,
não sei que horas são,
não visto etiqueta
nem ideologias.

Eu, agora que não sei,
é tão bom acordar,
perambular nos jardins de mim
e desanuviar, desanuviar...

Solineide Maria, poetisa e escritora itabunense e minha amiga

Um olhar no caminho de Beth

Beth saíra cedo de casa para aquele curso de inverno que havia se matriculado, meio contra a sua vontade, mas mudara de ideia ao lembrar que ele poderia lhe trazer futuros benefícios financeiros. Acabou atrasando-se, pois precisava tomar dois ônibus para chegar à universidade, fez todo o percurso pensando nas várias atividades que deixava pra trás para participar daquele curso, desceu do ônibus e resolveu esquecer um pouco das atribuições a que estava submetida, cantarolou uma música que fazia muito não cantava. Observou como mudara aquele lugar onde havia passado um bom tempo, participado de movimentos sociais, ampliado as suas perspectivas, feito amigos, enfim, aquele lugar estava diferente, não tinham mais aqueles estudantes apaixonados e cheio de ideais a que fizera parte, agora não passava de um lugar impessoal, de atitudes programadas, pouca espontaneidade. Sentiu uma ponta de tristeza, pensando nos momentos que ali passou.
Aproximando-se da sala sentiu um calafrio e um frêmito em seu coração, talvez por saber que ali não encontraria ninguém conhecido, sempre sentia-se assim quando penetrava em ambientes novos, insegura e ansiosa. Abriu a porta e sem olhar para todos deu bom dia a alguns e o fez com discrição para não atrapalhar a professora cubana que com sua oratória frenética buscava manter a atenção dos participantes.
Andando por entre as cadeiras, cuidando encontrar um bom lugar para sentar-se naquele auditório gelado, Beth descobriu um Olhar que parece tê-la aquecido e recepcionado-a, mas depois pensou que aquilo não passava de mais um dos tantos equívocos que ela cometia. Sentou-se e tentou se situar acerca do que falava a professora com o seu espanhol abrasileirado e uma demasiada simpatia, apresentava uma das várias histórias que iria contar ao longo do módulo que ministrava. Entre tédio e preguiça Beth ouvia os argumentos pouco convincentes da professora e pensava se valia mesmo a pena estar ali.
Aquele Olhar cruzou o olhar de Beth, que agora estava distante em terras estrangeiras, como aliás todos os lugares agora para Beth que parecia não mais se reconhecer, sobretudo em sua condição de mulher casada e mãe, parecia querer situar-se num outro lugar, afirmar sua identidade antes de tudo como mulher, valorizando os seus desejos e vontades, simples assim, passou a criar diálogos dentro de si acerca de sua liberdade e de suas escolhas. Voltando rapidamente dos pensamentos a que estava imiscuída, percebeu e olhou aquele Olhar. Aproximou-se do rapaz que parecia ter mais idade do que realmente tinha, conversaram e descobriram afinidades, a aula acabou, se dispersaram.
O dia seguinte foi marcado por uma espera e uma certa felicidade, de repente aquele curso ficou bastante interessante e toda a atenção de Beth estava voltada para aquele rapaz que a olhava diferente e parecia compreendê-la, novamente trocaram muitas ideias, almoçaram juntos e principalmente se olhavam muito.
Os dias se seguiram e Beth sentia-se muito feliz com aquele Olhar, pensou em como seria bom beijá-lo e um dia, depois de conversarem muito e embriagarem-se de álcool e de ideias, sentiram um desejo inexplicável e pensaram que mesmo casados poderiam permitir-se a algo tão intenso, voaram para um lugar onde puderam ficar mais à vontade e se beijaram apaixonadamente, trocaram carícias e se amaram. Mas passado aquele momento o rapaz encheu-se de culpa, não concebia aquilo, tinha se casado para ser feliz para sempre, talvez não tivesse feito a coisa certa. Beth, no entanto, sentiu-se feliz como há muito não se sentia, voltou para sua realidade travando diálogos internos ainda mais acirrados.
Entre expectativas e desejos, a resignação, a sensação de querer falar e também ouvir, mas a culpa, ah! Aquela culpa dilacerou o que ainda nem havia começado...que pena! Beth queria vê-lo novamente, queria sentir aquilo que sentiu ao beijá-lo, mas aquele Olhar agora vazio, ficou indiferente.

Catherine Santana

Destino indesejado

Aquele seria mais um daqueles dias difíceis, pensou a Mulher ao sair de casa, mesmo vestindo a melhor roupa, maquiando-se como mandam as convenções e ouvindo Jacques Brel suplicar que a amada não o deixasse em uma de suas chanson française, não sentia-se confortável. Pensando se valeria realmente a pena todo aquele sacrifício, fechou a porta de seu minúsculo apartamento e dirigindo-se ao ponto de ônibus mais próximo sentou-se mais à espera de algum acontecimento que a fizesse desistir daquele encontro do que propriamente de um ônibus, acendeu um cigarro e dispensou o primeiro que chegara com o destino indesejado.
Enquanto fumava relembrava a última vez que encontrara aquela tia e os demais familiares, era estranho admitir que odiava aquelas pessoas, ela própria ainda não sabia de que sentimento realmente se tratava, mas parecia ser levada a um impulso de colocar-se diante deles, e sob esses pensamentos tomou o ônibus seguinte quase duas horas depois.
Buscando integrar-se pensou o quanto era inútil esta tentativa, talvez porque também fosse tão inflexível e rija quanto aquele ambiente que a hostilizava e a relegava a um plano que ela jamais se reconheceria. Desesperada alienou-se, camuflando-se num cenário harmoniosamente social.
Novamente aquele olhar, novamente a sensação das palavras inadequadas, do comportamento vil. Em mais um de seus romapantes a Mulher jogou-se no mar e desintegrando-se foi devorada por peixes.

Catherine Santana

Felinos

Sentada à beira de uma escrivaninha, lendo um livro, percebo o olhar fixo em mim, sinto como se estivessem analisando a cada gesto meu, às vezes parecem querer me dizer algo. Caminham ao encontro do terceiro e sob o sol lambem-se freneticamente como fazem todos os dias, todas as horas. Lembro-me de Ferreira Gullar que os define como uma maquininha inventada pela natureza, com pêlos, bigodes, unhas e um motor afetivo que bate em seu coração e o seu ronronar é para mostrar o quanto é grato, lembro-me desse poema e sinto uma pontinha de felicidade ao vê-los brincarem. Toda doçura e mistério parecem estar concentrados nesses três que andam elegantemente e não tiram o seu olhar de mim, parecem querer me dizer algo e angustio-me por não conseguir fazê-los me mostrar o que querem de fato, por que me olham tanto e tão profundamente? O que querem afinal? Desisto, ponho-me a ler novamente mas não consigo me concentrar, passo agora a observá-lo mais e os vejo correndo como se estivessem gargalhando, esfregam-se no chão, rolam uns com os outros, refestelam-se, depois sobem na janela, pulam e eu corro para alcançar mais uma cena, eles fogem. Volto a ler meu livro e não mais me concentro pensando neles.

Catherine Santana