domingo, 15 de setembro de 2013

Ana

As ruas retratam a coesão que tão sofregamente buscam as pessoas, o barulho às 7:00 da manhã ecoam em uníssono, as mesmas caras, os mesmos gestos, e Ana pensa que a angústia que sente está atrelada a repetição de tudo o que está aí, fazer todos os dias o seu café, tomar o ônibus daquele mesmo horário, no trabalho os mesmos diálogos, os sorrisos amarelos dando passagem a outros sorrisos não menos amarelos. Ana decidiu que aquele dia seria diferente, não sabia bem como e o porquê, mas cansada da mediocridade que embalava os seus passos cotidianos, pensou que poderia romper com essa camuflagem a que se sentia tão inconfortavelmente ajustada, tudo tão previsível, entrar no trabalho às 8:00, dor de cabeça às 08:30, as conversas de sempre com os colegas sobre programas de TV, novelas...Não, Ana decididamente não estava a fim. Saindo do trabalho, buscando aquietar sua mente que passou todo o dia em conflito resolveu tomar outro caminho em direção a sua casa, eram diferente as pessoas, as ruas, o mendigo não era o mesmo, e o bêbado quis sua companhia, ela ainda hesitou, mas sentiu-se acolhida naquele boteco que fedia a sarjeta dos que ali estavam, pediu uma pinga, virou de uma só vez, contraiu a musculatura do rosto de tal forma que provocou o riso dos companheiros que aguardavam vê-la, o que diria Ana? A cachaça desceu queimando, Ana pediu outra e os amigos aplaudiram e puseram-se a cantar uma música que há muito Ana não ouvia...

sábado, 14 de setembro de 2013

Carlos sempre foi um homem exemplar, cumpridor dos deveres, submisso às regras, bom filho, seguiu todas as etapas em tempo hábil, estudou, foi à faculdade, tornou-se médico, como o pai, o avô e acredito que também o bisavô. Mas havia um detalhe importante: Carlos não era feliz, nunca o fora na verdade, sua vida sempre atrelada às obrigações nunca deixara muito espaço para que pensasse nessas coisas. Mas um dia Carlos pensou e como a tristeza sempre fora sua companheira casou-se com ela, casou-se e tornou-se feliz, não sei se para sempre, “por que o pra sempre, sempre acaba”.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Caridade?

Eram duas horas da tarde quando corri para o ponto ainda na esperança de tomar o ônibus daquele horário. Mas foi tentativa em vão, ele passara exatamente no tempo previsto, eu, no entanto, me atrasei um minuto, o suficiente para não alcançá-lo. Talvez não tivesse mesmo que tomá-lo, pensei nisso depois de presenciar uma cena que me faria questionar e refletir sobre a caridade e toda a sua conjuntura, isso aconteceu depois que um rapaz, de aproximadamente trinta anos, dirigiu-se a mim com um discurso que parecia esmaecido provavelmente por ter sido recorrentemente utilizado, lançava-o em busca de alguns trocados para alimentar-se, era o que dizia o rapaz que afirmava ser portador do vírus HIV, pensei alguns segundos antes de responder ou mesmo dá o Real que ele acabava exigindo, foi o que consegui entrever em seu discurso que o colocava em condição desfavorável e me enquadrava numa situação de responsabilidade sobre ele.
Pensei muito antes de dizer-lhe sim ou não, se eu lhe desse o Real que ele havia me pedido pouco representaria em meu orçamento, para ele, no entanto, corroborava, incentivava-o a solidificar sua situação de mendicância, eu seria conivente com a sua posição de vítima, isso porque eu estaria encorajando-o a pedir outras vezes a mim e a todos os transeuntes que ele encontrasse. Pensei nisso olhando em seu olhar, no que ele estaria pensando? Porque se dirigiu a mim se havia tantas outras pessoas ao meu lado em minha frente atrás de mim?
O ônibus chegou e ainda hesitei claudicante em minha decisão, o ônibus sairia dali a cinco minutos e durante esse tempo passei todo ele observando o rapaz que abordava outras pessoas, utilizando o mesmo texto, buscando trocados pela sua história. Sai de lá convencida de que a minha decisão fora a mais acertada, eu não o ajudaria dando qualquer quantia que fosse, ao contrário eu estaria colaborando para a sua possível resignação ou mesmo comodismo com a sua situação, seu inconformismo que o impede de tornar-se cidadão ativo na sociedade em que vive.
Passado um tempo encontrei novamente o rapaz, mas ao contrário do que pensei sobre sua incapacidade de transformar a sua realidade o que observei foi mesmo a vítima de um sistema opressor que impõe e exclui o rapaz e tantos outros portadores ou não do HIV nunca foram a escola, não tem ou tiveram acesso a informação ou se tiveram pela própria incapacidade de compreensão tiveram-na deturpada. Mas esse rapaz vota, milhares deles votam e embora excluídos, marginalizados, serão intimados a votar, a elegerem uma pessoa na qual ele nunca viu, não conhece e nem sabe da existência do plano de governo, mas que provavelmente a encontrará com aquele Real no ponto de ônibus.

domingo, 20 de novembro de 2011

Das Neves, Fischer e Eu

Essa é uma daquelas histórias em que acontece com a gente e sentimos uma vontade inexplicável de dividir com outras pessoas. Tudo teve início quando precisei às pressas fazer uma viagem. O destino não era tão importante, o caminho percorrido, o não-lugar, esse sim foi o responsável pelas histórias que se seguem. Acredito que a viagem modifica as pessoas, sua identidade, seu modo de ser e de estar, a viagem transforma e acima de tudo realiza uma espécie de aprendizado que só o trânsito pode proporcionar. A idéia de mudança, que se reflete na viagem é a metáfora perfeita para definir a perspectiva da própria vida.
Mas o que quero contar mesmo é de uma senhora que conheci durante esta viagem, uma dessas pessoas divertidas, cheias de histórias e com um senso de humor maravilhoso. Ela chegou um pouco depois de mim, eu já devia estar a umas três horas viajando, quando o ônibus parou numa cidadezinha, chamada Barra do Rocha, ela então entrou e sentou-se ao meu lado. Eu estava bastante compenetrada com a minha leitura, intrigada um pouco com a história, ávida pelos acontecimentos seguintes, pelo desenrolar da narrativa sobre uma mulher buscando refúgio, numa casa no meio de uma mata, parecia estar fugindo e a descrição dos fatos só me deixava ainda mais curiosa. O livro intitulado ‘Mulher no escuro’, do escritor norte americano Dashiell Hammett, um dos precursores do gênero noir, foi a leitura que escolhi para essa viagem, que a propósito não parecia prometer muito. Confesso que o meu interesse, ao eleger esse livro, residiu no fato tratar-se de uma mulher, imaginei pelo título alusões a condição da mulher, a que se referia aquele escuro? Bem, isso eu viria saber algumas horas depois.
Durante a leitura, fui surpreendida pela abordagem animada da senhora que chegou conversando comigo como se já nos conhecêssemos, dizendo aprovar a minha iniciativa de estar lendo um livro tão interessante e com letras tão grandes. Segundo ela, havia deixado, há alguns instantes, uma leitura por que o livro que escolhera possuía letrinhas miudinhas, de modo que ela não conseguia lê-lo, pois havia deixado seus óculos em casa. Pedindo-me licença para ver o livro, foi retirando-o da minha mão para analisá-lo, reivindicando, por assim dizer, minha atenção, para contar-me a história da sua vida.
Sua narração foi iniciada, entrecortada pela atenção dispensada ao cobrador de passagens, ora falava comigo, ora conversava com o rapaz educado que aguardava enquanto Das Neves procurava o dinheiro em sua bolsa, possuidora, aliás, de todos os tipos de objetos possíveis e inimagináveis, e o mais interessante eram os acontecimentos narrados sobre cada um dos pertences. Pentes, espelhos, batons, livros, fotografias antigas, anotações, leque, documentos e pasmem, até uma sandália foi retirada daquela bolsa minúscula. Ela não parecia comportar tantos objetos, quem a visse não imaginaria no baú de guardados, a memória de Das Neves no trânsito de suas costumeiras viagens. Busquei nela alguma relação com Luise Fischer, a protagonista da história que lia, aparentemente nada em comum, mas o fato de tratar-se de uma mulher, provavelmente teria alguma relação, pois historicamente as mulheres tiveram situações bastante parecidas. Não puderam inscrever-se na história e sempre foram relegadas ao jugo masculino.
‘Mulher no escuro’, escrito na década de 30, é constituída numa perspectiva de transgressão, pois a personagem principal possuía um comportamento que não era condizente com uma mulher daquela época. Perseguida, ela busca refúgio na casa de um homem desconhecido. O mistério, como uma característica do gênero noir, é um elemento que conduz a história e nos instiga a leitura nos remetendo aos filmes com o mesmo estilo, recheados de suspense e romantismo.
Os personagens, de moral ambígua, apresentados na novela, me fizeram imaginar diversas situações em que Das Neves era a protagonista. Possuiria aquela senhora mistérios como os de Fischer, estaria fugindo de alguma situação ou alguém? Era o que eu pensava enquanto ela contava as histórias dos objetos que retirava da bolsa. Seu entusiasmo chamava a atenção dos demais passageiros. Muitos riam e acompanhavam os detalhes da narrativa interessante daquela senhora.
Depois de finalmente encontrar o dinheiro para pagar a passagem, ela se ajeitou na poltrona e iniciou mais uma das tantas histórias que eu iria ouvir ao longo da viagem. Começou me contando sobre a sua relação com a leitura, segundo ela, não tinha podido estudar, porque seu pai, que inclusive tinha sido professor, não permitiu que ela, na época, freqüentasse a escola, apenas os irmãos homens é que tiveram a oportunidade. Maria das Neves, como havia se apresentado, junto às irmãs foi privada da alfabetização. Senti raiva desse pai, pensei na opressão em que muitas mulheres foram e são submetidas, mas ponderei ao perceber o carinho com que ela se referia a ele. A educação comum a muitas mulheres é o reflexo de uma estrutura hierárquica que sempre a colocou em posição de desvantagem em relação ao homem, tal composição, que delineou a organização da sociedade, circunscreveu mulheres como Das Neves a instituições como casamento e família, privando-as de construir sua história.
Das Neves, como preferia ser chamada, relatou a forma heróica como aprendera a ler. Sua infância foi narrada com muito esmero, as brincadeiras, e a maior façanha realizada quando criança: aprendera a ler sozinha! Como fora proibida de ter acesso aos livros, acostumou-se a roubá-los. Na calada da noite, enquanto seus pais e irmãos dormiam, buscava na casa, o único candeeiro, para auxiliá-la no plano infalível. A garotinha passava o dia admirando os livros, que a noite seriam seus companheiros. Sua expressão era de uma menina narrando uma travessura, seus olhos brilhavam e ela ria com prazer ao lembrar-se com detalhes do que fazia para conhecer aquelas histórias maravilhosas que escondiam os livros. Sentia-se feliz, uma felicidade clandestina. Narrou com orgulho os intentos realizados a partir dessa atitude, alfabetizada havia empreendido diversas conquistas.
Depois que o marido faleceu, dez anos antes da nossa conversa, ela conta que foi quando realmente começou a viver sua vida, antes vivia a vida que ‘os outros’ escolheram para ela, eram essas as suas palavras. Filhos, marido, satisfação que devia as pessoas, eram os obstáculos que a impediram de viver sua liberdade, suas escolhas. Mas agora pudera namorar, beijar, amar e ser amada, coisa que ela só via nas leituras antes proibidas. A resignação esperada por uma mulher e ainda por cima viúva, foi ignorada por das Neves que desestabilizou certezas, abalando e transgredindo normas que a colocam em modelos não ajustáveis para ela. Era interessante como, aos 69 anos de idade, esta senhora consiga ter um posicionamento tão crítico e, sobretudo, otimista em relação à vida. Admirei sua sabedoria, disposição e principalmente coragem. Conheço mulheres que jamais conquistariam essa ruptura.
Das Neves, uma mulher nascida no interior do estado da Bahia, educada numa roça, privada de estudar, casou-se sem ao menos conhecer direito o homem que se tornaria o seu marido. Luise Fischer, mulher, atriz, e embora tivesse a oportunidade de escolher o seu companheiro, teve problemas sérios ao decidir romper a relação, fora acusada de roubar as jóias que havia ganhado do homem com que escolhera viver e ameaçada diversas vezes, quando decidira ir embora. Duas mulheres tão diferentes e tão iguais, com perspectivas e caminhos distintos, mas aproximadas pelo fato de serem mulheres, unidas por uma história que também é minha.
Nossas histórias tiveram finais felizes. Das Neves que estava prestes a descer do ônibus, contou-me novas histórias, o namorado quer quis se aproveitar de sua aposentadoria, mas que foi dispensado por se mostrar tão cafajeste. O cantor que namorou, e que só aparecia uma vez por ano quando ia cantar na quermesse, esse beijava bem, mas era um Don Juan. Das neves, prestes a se apaixonar, acabou mandando-o embora, a última coisa que queria era prender-se a alguém, a vida é curta e ela já havia perdido muito tempo. A viagem que faria dali a um mês para visitar os filhos, e de quanto tudo isso a deixava feliz, foram comentários feitos entre uma história e outra. Ela estava vivendo! Luise Fischer também conseguiu libertar-se daquele homem que vivia ameaçando-a, a perseguição finalmente havia acabado.
Minha companheira de viagem chegara ao seu destino, despediu-se de mim, deixou comigo seu endereço, convidando-me para ir visitá-la sempre que quisesse. Confesso ter ficado triste quando ela foi embora, senti-me realmente feliz durante o tempo em estivemos juntas. ‘Felicidade se acha em horinhas de descuido’. Não serei mais a mesma depois de Das Neves, acredito ter ampliado ainda mais minhas perspectivas feministas. Não consegui retomar de pronto minha leitura, passei o restante dela pensando nas histórias ouvidas e de certa forma vivida. Chegando ao meu destino, já não era mais a mesma. Viajei.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

A digitalização do livro impresso: uma nova perspectiva da sociedade capitalista

A sociedade de consumo ao recriar a recepção literária por lidar com o fenômeno da divulgação e da distinção, reelabora novos espaços de divulgação dos livros, que passam a ser massificados pela perspectiva da acessibilidade, como característica da modernidade. Sob essa perspectiva muitos livros são disponibilizados em sites de importantes bibliotecas nacionais e internacionais, A era tecnológica imbrica-se na leitura emergindo portanto uma questão bastante intrigante, o livro impresso está com seus dias contados?
A leitura vem sendo questionada a cerca de uma reelaboração em sua perspectiva, pois acredita-se que a leitura através da internet esteja ampliando e determinando uma nova possibilidade de conceber esta atividade.
Novos suportes tecnológicos põem em cheque a sobrevivência do livro, este que já constituiu o apanágio da modernidade, pois surgiu no momento das revoluções, marcando o progresso econômico e cultural da Europa Ocidental. A divulgação do conhecimento reconheceu nesse suporte uma ação decisiva para a sociedade em constante tranformação. Tal transformação tem determinado uma nova perspectiva para este suporte que amplia a tradicional forma de leitura.
Os recém lançados Ipads lança uma questão polêmica acerca da sobrevivência do livro. Muitos defendem a ideia do fim das bibliotecas convencionais e vislumbram de forma profética que o armazenamento on-line substituirá, num futuro bem próximo, o livro impresso. É possível pensar, diante desta nova possibilidade que seria muito mais cômodo e rápido acessar os acervos virtuais do que dirigir-se a uma biblioteca.
Questões como essas são levantadas pelo historiador Robert Darnton, em seu livro “A questão dos livros”, pois o acesso às bibliotecas são gratuitos, com a digitalização dos livros surge uma dúvida, o acesso a eles continuará a ser? O autor aponta para a soberania da Google, o maior e mais utilizado site de buscas do mundo, além de ser a detentora de redes sociais, como o Orkut e o Youtube, o maior site de acervo videográfico do mundo.
Darnton afirma que o Google já digitalizou cerca de 10 milhões de livros, o lado positivo é que ele possibilitará que consumidores comprem acesso a milhoẽs de livros, protegidos por copyright e ainda em catálogo, para leitura em telas de computador ou equipamentos portáteis. Outros milhões de livros, cerca de 7 milhões de obras sob copyright, mas fora de catálogo, incluindo milhões de obras consideradas orfãs, pois os detentores de direitos ainda não foram identificados, ficarão disponíveis mediante assinaturas pagas por instituições, como universidades.
Ainda segundo Darnton, esse banco de dados, em conjunto com livros em domínio público já digitalizados pelo Google, formará uma biblioteca digital gigantesca que crescerá gradualmente até um dia ultrapassar a Biblioteca do Congresso (que atualmente contém mais de 21 milhões de livros catalogados).
O autor mostra-se preocupado não necessariamente com o novo suporte, mas com os preços, pois algumas informações demonstram o perigo dos monopólios e sua tendência de cobrar preços monopolistas. Outra questão apontada pelo autor é a possibilidade do controle do Google sobre o acesso aos livros acabar reforçando seu poder também sobre o acesso a outros tipos de informação, levantando questões de privacidade (o Google pode agregar dados sobre a leitura, os e-mail(s), o consumo, a moradia, as viagens, o emprego e muitas outras atividades dos usuários. Não podemos deixar de mencionar que o Google é uma empresa e seu objetivo principal é gerar lucros para seus acionistas.
Darnton, embora aponte tais perspectivas para essas ações que podem monopolizar ou dificultar o livre acesso a cultura não é contra a digitalização, pois alguns projetos com o Gutenberg-e, uma editora virtual que publica trabalhos acadêmicos, onde o acesso é gratuito, foi idealizado pelo historiador. Muitos trabalhos acadêmicos, como teses e dissertações estão disponibilizados no computador. Darnton, que teve experiência numa biblioteca convencional, pois durante um longo tempo foi diretor da biblioteca de Harvard, buscou dinamizar as possibilidades de acesso às leituras criando uma maneira de democratizar a informação através da criação de bibliotecas digitais públicas. Segundo o historiador:
Em 9 de novembro de 2009, no Tribunal Distrital do Distrito Sul de Nova York, a Authors Guild e a Association of American Publishers estavam programadas para entregar um acordo que resolveria sua ação judicial contra o Google alegando violações de copyright no programa para digitalizar milhões de livros de bibliotecas de pesquisa e disponibilizá-los de graça na internet. Você pode achar que isso não se compara à queda do Muro de Berlim. É verdade, mas por vários meses todos os olhos do mundo dos livros — autores, editores, bibliotecários e muitos leitores — ficaram atentos ao tribunal distrital e seu juiz, Denny Chin, pois essa disputa aparentemente pouco relevante sobre direitos autorais parecia capaz de determinar o futuro digital de todos nós.

Monopolizar a informação seria como retrocerder na história, os franceses, que tem participado de todo o processo que dá direito ao Google citaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, para defender o princípio do “livre acesso à informação” que parece estar ameaçado pelo “monopólio de facto” do Google. Recorrendo aos aspectos culturais, os franceses enfatizaram o caráter único dos livros por acreditarem ser um produto diferente dos outros e sua capacidade de capturar a criatividade e enriquecer a civilização promovendo a diversidade, mas tudo isso estrai prejudicado pelo compromisso da Google com a comercialização.
Segundo Darnton os alemães também se pronunciaram e falaram em nome da “terra dos poetas e pensadores”, mas enfatizaram sobretudo o direito à privacidade, que segundo ele poderia ser ameaçada se o Google armazenasse dados sobre quem lê o quê. Os governos da França e da Alemanha listam em seguida uma série de argumentos complementares, quase os mesmos, palavra por palavra — e isso não é surpresa alguma, já que os dois países contrataram a mesma assessoria jurídica:
1. O acordo concede ao Google um possível monopólio sobre as obras órfãs, mesmo que a empresa não tenha direitos sobre seus copyrights.
2. A cláusula de exclusão voluntária, segundo a qual os autores aceitam tacitamente o acordo a não ser que notifiquem o Google do contrário, viola os direitos inerentes à condição de autor.
3. O acordo contém uma cláusula de favorecimento — isto é, um dispositivo que impede possíveis concorrentes de obterem termos melhores que os conquistados pelo Google em quaisquer novos usos comerciais de livros digitalizados. Os termos desses empreendimentos futuros serão determinados pelo Book Rights Registry, composto exclusivamente por representantes dos autores e editores. Esse registro cuidará dos copyrights e cooperará com o Google no estabelecimento de preços.
4. O acordo concede ao Google o poder de censurar seu banco de dados, excluindo até 15% das obras digitalizadas.
5. Suas diretrizes de preços promoverão os interesses comerciais do Google, e não o bem público, mediante o uso de algoritmos criados pelo Google conforme os métodos secretos do Google.
6. O acordo favorece o sigilo generalizado, ocultando procedimentos de auditoria, impedindo o comparecimento do público às reuniões onde o Google e o Book Rights Registry discutirão assuntos relativos a bibliotecas e até mesmo exigindo que o Google, autores e editores destruam todos os documentos relevantes ao consenso sobre o acordo.
Franceses e alemães concordam em condenar o acordo por sancionar a concentração de poder nas maõs de uma única entidade corporativa ameaçando o livre acesso de ideias através da literatura. Argumentam que o Google obteve uma receita superior a muitos países em 2008, chegando a cerca de 22 bilhões de dólares.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


DARNTON, Robert. A questão dos livros : passado, presente e futuro / Tradução de Daniel Pellizzari — São Paulo : Companhia das Letras, 2010.

A Literatura e a Teoria em detrimento de uma sociedade de consumo

A Literatura vem sendo questionada a cerca de sua sacralização nos meios acadêmicos, pois sempre refletiu um certo distanciamento das classes populares por colocar-se numa erudição que sempre a tornou fechada e elitizada, em seu acesso comum apenas aos europeus e quem coadunasse com a sua perspectiva. Muitos aspectos vêm contribuindo para essa discussão que remonta um novo olhar sobre a Literatura, que passa a ser considerada não mais em sua condição de obra estética e seus critérios de literariedade, mas na possibilidade de apontar novos caminhos de ordem teóricas ou de travar diálogos sobre temas que interessem não só a um público específico.
A influência que as teorias estrangeiras exercem sobre a crítica literária vem abrindo espaço para a revisão de novos conceitos e uma nova postura frente ao questionamento do novo lugar da Literatura, isso perpassa pelo reconhecimento da descentralização do lugar de enunciação do conhecimento, segundo Souza:
A recente inclinação de conjugar o saber produzido por especialistas com sua divulgação mais popularizada traduz os diferente lugares por onde passa atualmente o conhecimento, exigindo a revisão de antigos preconceitos relativos à separação entre cultura erudita, popular e de massa. (2002, p.63).

As tranformações culturais e políticas que ocorrem nas últimas décadas vem influenciando incisivamente para as mudanças na crítica literária e uma dessas mudanças estaria atrelada aos “Estudos Culturais” que para alguns críticos poderia ameaçar os estudos literários. Diante disso, conhecer os lugares de onde estão sendo enunciados os diferentes discursos teóricos seria determinante na constituição de uma nova postura frente à teoria literária, pois há que se reconhecer a relevância da interdisciplinaridade em todos os campos de conhecimento, na medida em que a mesma se faz tão presente de forma bastante harmoniosa nesse momento onde as tendências contemporâneas caracterizadas de um pluralismo de posições e de métodos estejam em voga.
A teoria ascende sob uma nova perspectiva, na medida em que se é reconhecida não mais num lugar de estabilidade mas ao contrário vê-se instaurada numa teia de possibilidades e de novas tendências culturais e literárias que se amplia:
o que está em jogo, entre as tendências culturais e literárias, não se restringe apenas à escolha de obras que participem ou não do cânone literário. Relaciona-se ao caráter regulador da crítica cultural, ao considerar elitista a preferência do estudioso por escritores consagrados e tradicionalmente aceitos pela comunidade acadêmica.(idem, 2002, p.67)

O que defende-se aqui, portanto, está relacionado a possibilidade de se colocar em debate o novo lugar da teoria sem perder de vista todo o processo histórico a que ela esteve submetida. A falência teórica, descrita por John M. Ellis, professor de Literatura Alemã, recai segundo Souza, na filosofia francesa dos anos 70 e que são representadas por Foucault e Derrida. Ainda segundo a autora: dotada de linguagem própria, essa elite intelectual afastaria os que não se enquadrariam nos novos conceitos e expressões do momento, criando-se uma situação de exclusão “politicamente incorreta”...(2000, p. 67). A proposta da desconstrução da rigidez dos conceitos deve perpassar pelo reconhecimento da constante mudança que a teoria está imiscuída. A interdisciplinaridade deve ser encarada e praticada com um certo rigor, como propõe Compagnon, para não incorrer no erro de se tornar uma prática pulverizada e vaga resultando na impossibilidade de se conquistar o seu devido respaldo. A interdisciplinaridade , de vilã da história poderia receber tratamento mais condizente com sua força de aglutinação de diferenças e de pulverização dos limites fechados dos campos teóricos (2000, p.73)
O novo lugar da Literatura ou ainda o “não-lugar” torna presente a necessidade de se reconhecer essa posição de instabilidade como advento de uma multiplicidade discursiva, muitos teóricos, no entanto, defendem uma especificidade da Literatura, por desconfiarem da interdisciplinaridade e por esta apagar as diferenças devido a confluência de diversas disciplinas. A crítica tradicional vem tentando, de forma radical, resguardar a Literatura e sua possível diluição no campo dos estudos culturais.
O processo no qual foram rompidos os limites dos campos disciplinares, estabelecendo a cooperação entre arte, literatura e teoria e intitulado por David Carrol como paraestética não resulta no fim da teoria mas no entendimento que nem a idealização da estética, nem a supremacia da teoria devem predominar, mas ambos devem conviver no entre-lugar1 levando-se em conta os aspectos relevantes de cada um.
A tradição cultural é remontada sob o viés das transformações ocorridas nesse início do século, novas produções literárias aparecem como um corpo estranho ao paradigma literário tradicional mas muito bem ajustados ao novo cenário contemporâneo. O Objeto literário vem perdendo a sua aura em detrimento de uma perspectiva mercadológica, abrindo espaço para a cultura de massa. O acesso fácil as informações tem nutrido e incentivado a superficialidade da obra literária, pois não se há tempo a perder deglutindo informações que requer mais tempo, é necessário como nos fast foods a ingestão de informações de fácil processamento. É difícil reconhecer tal possibilidade, mas infelizmente é isso que assistimos no cenário mundial.
A Literatura, inserida no conceito de modernidade, o que para Canclini é constituído por quatro movimentos básicos, caminha de acordo com a perspectiva de tais projetos, e que segundo o autor são: projeto emancipador, expansionista, renovador e democratizador. Cada um deles caracteriza a contemporaneidade e as tendências nos campos culturais.
O projeto emancipador caracteriza-se pela racionalização da vida social e o crescente individualismo principalmente nas grandes cidades. A tendência da modernidade que busca estender o conhecimento e a posse da natureza, a produção e a circulação e o consumo dos bens é denominado como expansionista. Dois aspectos abrangem o projeto renovador, um deles busca o aperfeiçoamento e inovação constantemente, de acordo com CANCLINI: são próprios de uma relação com a natureza e com a sociedade liberada de toda prescrição sagrada sobre como deve ser o mundo; de outro a necessidade de reformular várias vezes os signos de distinção que o consumo massificado desgasta (200:32). O projeto democratizador acredita na educação e na difusão da arte e dos saberes especializados para chegar a uma evolução racional e moral.
Deter a Literatura em um desses projetos seria difícil, pois eles são concomitantes e se entrecruzam, embora ao se desenvolverem entram em choque, pois de um lado existe a necessidade utópica de se pensar o saber e a criação em espaços que pudessem desenvolver-se com autonomia, e de outro a modernização política e econômica e tecnológica parecem ter atrofiado tal possiblidade. A arte enfrenta a contradição de estar inserida numa sociedade que ao passo que necessita da divulgação que está relacionada a ampliação do mercado e o consumo dos bens para aumentar o lucro, recriam signos que venham a distinguir os setores hegemônicos, buscando desta forma a: distinção.
A sociedade de consumo recria a recepção artística e literária, pois lida com o fenômeno da divulgação e da distinção, reelaborando estes espaços de divulgação das obras, que passam a ser massificadas pela perspectiva da acessibilidade, como característica da modernidade, ou da pós-modernidade, pois ambas coexistem, embora tentem negar de forma contraditória o surgimento de uma em detrimento de outra. Ainda segundo CANCLINI: Em sociedades modernas e democráticas, onde não há superioridade de sangue nem títulos de nobreza, o consumo se torna uma área fundamental para instaurar e comunicar as diferenças (2000: 36).
A questão do gosto artístico, para a burguesia, serviria apenas para justificar que suas prioridades não estão atreladas apenas pela acumulação econômica. E o que ocorre é que a arte acaba sendo relacionada a intenções políticas e este tipo de imposição revela a manutenção e propagação da ideologia de grupos dominantes e o silenciamento das vozes de tantos outros grupos culturais descriminados e marginalizados. Propaga-se desta forma um tipo de arte que restringe a dinamicidade e a originalidade da manifestação artística.
Muitos artistas propuseram reinventar a arte de forma que ela se reintegrasse a nova perspectiva mercadológica, como afirma CANCLINI:
Tatlin e Malevitch foram encarregados de aplicar suas inovações em monumentos, cartazes e outras formas de arte pública; Arvatov, Rodchenko e muitos artistas foram para as indústrias para reformular o design, promoveram mudanças substanciais nas escolas de arte a fim de desenvolver nos alunos “uma atitude industrial em relação à forma” e de fazê-los “engenheiros projetistas”, úteis ao planejamento socialista. (Ibdem,2000: 44)

Mas a autonomia que a arte busca incessantemente esmaece sob o novo cenário que a subjuga em detrimento de um mercado em crescente ascensão determinadas por forças extraculturais.
Novos critérios de avaliação e inserção na sociedade revelam a arte e, portanto a Literatura sob um novo olhar. O mercado exerce uma força descomunal sobre a autonomia artística e isso recria o novo lugar da arte e portanto da Literatura, que não está mais restrita a um público específico mas a diversos públicos. De um lado a expansão da divulgação artística e do outro a dependência à indústria cultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


CANCLINI, Néstor Garcia. “Das utopias ao mercado” Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2000, p.31-66.

SANTIAGO, Silviano. A democratização no Brasil ( 1979-1981 ) - Cultura versus Arte. In: O comopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p.134-156.

SOUZA, Eneida Maria. A teoria em crise e O não lugar da literatura. In: Crítica Cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 63-84.

quarta-feira, 30 de março de 2011

A representação feminina no romance Atire em Sofia

O romance Atire em Sofia (AS), da escritora Sônia Coutinho possui alguns temas que perpassam pela discussão da teoria feminista, uma delas é a representação feminina, visto que as mulheres, enquanto sujeito, necessitam que suas qualificações sejam atendidas para que a representação possa de fato acontecer de forma mais ampla. O livro apresenta, já no início, o rompimento de Sofia, personagem central da trama, com a tradição, demonstrando como a mulher sente-se irrepresentada socialmente, pois se necessita de uma ruptura, é por não sentir-se acomodada nos modelos pré-estabelecidos. Para Foucault, os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que subsequentemente passam a representar (apud, Buttler, 2008, p.18).
Rousseau, em Emílo ou Da educação, enfatiza sobre a maneira como devem se comportar as mulheres e o faz através de uma personagem que também se chama Sofia. A mulher ideal, para ele, “é da ordem da natureza que a mulher obedeça ao homem”. “Sofia” (do grego sopfos), isto é, aquele que age com sabedoria. Para Rousseau, uma mulher agir com sabedoria significava resignar-se à sua condição de fragilidade devido ao fator natural, para Sônia Coutinho, no entanto, sabedoria para a mulher representa contrariar a tradição, não aceitar a imposição de uma vida com um roteiro estabelecido, é desta forma, que a personagem Sofia, do seu livro, questionou o seu lugar na sociedade e partiu em busca de uma vida, em que pudesse tomar suas próprias decisões, escolher e delinear sua ou suas identidades.
A (não) representação feminina decorre do fator da diferença dos sexos, daí que para a teoria feminista, tende haver a distinção de sexo e gênero, de forma a questionar a formulação de que a biologia é o destino. Para Buttler (2008), a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é, culturalmente construído, portanto não é nem o resultado causal do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. A diferença sexual apresentou-se como uma fronteira natural e fixa entre o político e o doméstico, isto é, entre o que representa a si mesmo e o representado; entre o autônomo e o dependente (Scott, 2002).
O livro apresenta ainda outro tema, o casamento, a heterossexualidade hegemônica que se estrutura sob a hierarquia que mantem a mulher em posição de desvantagem, na medida em que se apresenta de maneira radicalmente diferente para o homem e para a mulher, fixando limitações aos comportamentos estabelecidos. Beauvoir (1980) afirma que ambos os sexos são necessários um ao outro, mas essa necessidade nunca desenvolveu nenhum tipo de reciprocidade, pois, socialmente, o homem é um indivíduo autônomo, ao passo que a mulher nunca constituiu uma casta, que fosse capaz de estabelecer permutas e contratos, em pé de igualdade, com a masculina. Essa é uma perspectiva apontada por Sofia, personagem central do livro:
Os casamentos aqui, na geração de minha mãe, eram longos exercícios de ódio. A mulher deveria permanecer sempre criança, para melhor agradar e servir ao homem. Ao longo dos séculos, seu único aprendizado foi a esperteza doméstica. Só podia tirar alguma vantagem ou satisfação da retribuição que, por acaso, os homens oferecessem por seus serviços. Prazeres físicos eram considerados inadequados, impróprios, pecaminosos, para uma mulher “direita”. Gerações inteiras de mulheres de que não temos nenhuma notícia, de cuja vida não ficou registro nenhum. Mulheres de quem nada se sabe, porque a vida inteira cumpririam tarefas consideradas subalternas. Preparar comida, lavar fraldas, amamentar, cuidar de doentes agonizantes, esperar. Apenas deveres, causaria estranheza se tentassem alguma coisa diferente. Mulheres que até aqui se desabituaram de dizer “eu sou”, “eu quero”. (AS, 1989, p.50)

O cartesianismo influenciou sobremaneira o pensamento ocidental, visto que tal perspectiva impõe um hierarquia, privilegiando, nesse caso, o homem, em detrimento da mulher. Esta ideia, no entanto, vem a ser desconstruída no romance, em questão, ao instaurar uma ruptura aos modelos impostos e esperados para uma mulher.