domingo, 20 de novembro de 2011

Das Neves, Fischer e Eu

Essa é uma daquelas histórias em que acontece com a gente e sentimos uma vontade inexplicável de dividir com outras pessoas. Tudo teve início quando precisei às pressas fazer uma viagem. O destino não era tão importante, o caminho percorrido, o não-lugar, esse sim foi o responsável pelas histórias que se seguem. Acredito que a viagem modifica as pessoas, sua identidade, seu modo de ser e de estar, a viagem transforma e acima de tudo realiza uma espécie de aprendizado que só o trânsito pode proporcionar. A idéia de mudança, que se reflete na viagem é a metáfora perfeita para definir a perspectiva da própria vida.
Mas o que quero contar mesmo é de uma senhora que conheci durante esta viagem, uma dessas pessoas divertidas, cheias de histórias e com um senso de humor maravilhoso. Ela chegou um pouco depois de mim, eu já devia estar a umas três horas viajando, quando o ônibus parou numa cidadezinha, chamada Barra do Rocha, ela então entrou e sentou-se ao meu lado. Eu estava bastante compenetrada com a minha leitura, intrigada um pouco com a história, ávida pelos acontecimentos seguintes, pelo desenrolar da narrativa sobre uma mulher buscando refúgio, numa casa no meio de uma mata, parecia estar fugindo e a descrição dos fatos só me deixava ainda mais curiosa. O livro intitulado ‘Mulher no escuro’, do escritor norte americano Dashiell Hammett, um dos precursores do gênero noir, foi a leitura que escolhi para essa viagem, que a propósito não parecia prometer muito. Confesso que o meu interesse, ao eleger esse livro, residiu no fato tratar-se de uma mulher, imaginei pelo título alusões a condição da mulher, a que se referia aquele escuro? Bem, isso eu viria saber algumas horas depois.
Durante a leitura, fui surpreendida pela abordagem animada da senhora que chegou conversando comigo como se já nos conhecêssemos, dizendo aprovar a minha iniciativa de estar lendo um livro tão interessante e com letras tão grandes. Segundo ela, havia deixado, há alguns instantes, uma leitura por que o livro que escolhera possuía letrinhas miudinhas, de modo que ela não conseguia lê-lo, pois havia deixado seus óculos em casa. Pedindo-me licença para ver o livro, foi retirando-o da minha mão para analisá-lo, reivindicando, por assim dizer, minha atenção, para contar-me a história da sua vida.
Sua narração foi iniciada, entrecortada pela atenção dispensada ao cobrador de passagens, ora falava comigo, ora conversava com o rapaz educado que aguardava enquanto Das Neves procurava o dinheiro em sua bolsa, possuidora, aliás, de todos os tipos de objetos possíveis e inimagináveis, e o mais interessante eram os acontecimentos narrados sobre cada um dos pertences. Pentes, espelhos, batons, livros, fotografias antigas, anotações, leque, documentos e pasmem, até uma sandália foi retirada daquela bolsa minúscula. Ela não parecia comportar tantos objetos, quem a visse não imaginaria no baú de guardados, a memória de Das Neves no trânsito de suas costumeiras viagens. Busquei nela alguma relação com Luise Fischer, a protagonista da história que lia, aparentemente nada em comum, mas o fato de tratar-se de uma mulher, provavelmente teria alguma relação, pois historicamente as mulheres tiveram situações bastante parecidas. Não puderam inscrever-se na história e sempre foram relegadas ao jugo masculino.
‘Mulher no escuro’, escrito na década de 30, é constituída numa perspectiva de transgressão, pois a personagem principal possuía um comportamento que não era condizente com uma mulher daquela época. Perseguida, ela busca refúgio na casa de um homem desconhecido. O mistério, como uma característica do gênero noir, é um elemento que conduz a história e nos instiga a leitura nos remetendo aos filmes com o mesmo estilo, recheados de suspense e romantismo.
Os personagens, de moral ambígua, apresentados na novela, me fizeram imaginar diversas situações em que Das Neves era a protagonista. Possuiria aquela senhora mistérios como os de Fischer, estaria fugindo de alguma situação ou alguém? Era o que eu pensava enquanto ela contava as histórias dos objetos que retirava da bolsa. Seu entusiasmo chamava a atenção dos demais passageiros. Muitos riam e acompanhavam os detalhes da narrativa interessante daquela senhora.
Depois de finalmente encontrar o dinheiro para pagar a passagem, ela se ajeitou na poltrona e iniciou mais uma das tantas histórias que eu iria ouvir ao longo da viagem. Começou me contando sobre a sua relação com a leitura, segundo ela, não tinha podido estudar, porque seu pai, que inclusive tinha sido professor, não permitiu que ela, na época, freqüentasse a escola, apenas os irmãos homens é que tiveram a oportunidade. Maria das Neves, como havia se apresentado, junto às irmãs foi privada da alfabetização. Senti raiva desse pai, pensei na opressão em que muitas mulheres foram e são submetidas, mas ponderei ao perceber o carinho com que ela se referia a ele. A educação comum a muitas mulheres é o reflexo de uma estrutura hierárquica que sempre a colocou em posição de desvantagem em relação ao homem, tal composição, que delineou a organização da sociedade, circunscreveu mulheres como Das Neves a instituições como casamento e família, privando-as de construir sua história.
Das Neves, como preferia ser chamada, relatou a forma heróica como aprendera a ler. Sua infância foi narrada com muito esmero, as brincadeiras, e a maior façanha realizada quando criança: aprendera a ler sozinha! Como fora proibida de ter acesso aos livros, acostumou-se a roubá-los. Na calada da noite, enquanto seus pais e irmãos dormiam, buscava na casa, o único candeeiro, para auxiliá-la no plano infalível. A garotinha passava o dia admirando os livros, que a noite seriam seus companheiros. Sua expressão era de uma menina narrando uma travessura, seus olhos brilhavam e ela ria com prazer ao lembrar-se com detalhes do que fazia para conhecer aquelas histórias maravilhosas que escondiam os livros. Sentia-se feliz, uma felicidade clandestina. Narrou com orgulho os intentos realizados a partir dessa atitude, alfabetizada havia empreendido diversas conquistas.
Depois que o marido faleceu, dez anos antes da nossa conversa, ela conta que foi quando realmente começou a viver sua vida, antes vivia a vida que ‘os outros’ escolheram para ela, eram essas as suas palavras. Filhos, marido, satisfação que devia as pessoas, eram os obstáculos que a impediram de viver sua liberdade, suas escolhas. Mas agora pudera namorar, beijar, amar e ser amada, coisa que ela só via nas leituras antes proibidas. A resignação esperada por uma mulher e ainda por cima viúva, foi ignorada por das Neves que desestabilizou certezas, abalando e transgredindo normas que a colocam em modelos não ajustáveis para ela. Era interessante como, aos 69 anos de idade, esta senhora consiga ter um posicionamento tão crítico e, sobretudo, otimista em relação à vida. Admirei sua sabedoria, disposição e principalmente coragem. Conheço mulheres que jamais conquistariam essa ruptura.
Das Neves, uma mulher nascida no interior do estado da Bahia, educada numa roça, privada de estudar, casou-se sem ao menos conhecer direito o homem que se tornaria o seu marido. Luise Fischer, mulher, atriz, e embora tivesse a oportunidade de escolher o seu companheiro, teve problemas sérios ao decidir romper a relação, fora acusada de roubar as jóias que havia ganhado do homem com que escolhera viver e ameaçada diversas vezes, quando decidira ir embora. Duas mulheres tão diferentes e tão iguais, com perspectivas e caminhos distintos, mas aproximadas pelo fato de serem mulheres, unidas por uma história que também é minha.
Nossas histórias tiveram finais felizes. Das Neves que estava prestes a descer do ônibus, contou-me novas histórias, o namorado quer quis se aproveitar de sua aposentadoria, mas que foi dispensado por se mostrar tão cafajeste. O cantor que namorou, e que só aparecia uma vez por ano quando ia cantar na quermesse, esse beijava bem, mas era um Don Juan. Das neves, prestes a se apaixonar, acabou mandando-o embora, a última coisa que queria era prender-se a alguém, a vida é curta e ela já havia perdido muito tempo. A viagem que faria dali a um mês para visitar os filhos, e de quanto tudo isso a deixava feliz, foram comentários feitos entre uma história e outra. Ela estava vivendo! Luise Fischer também conseguiu libertar-se daquele homem que vivia ameaçando-a, a perseguição finalmente havia acabado.
Minha companheira de viagem chegara ao seu destino, despediu-se de mim, deixou comigo seu endereço, convidando-me para ir visitá-la sempre que quisesse. Confesso ter ficado triste quando ela foi embora, senti-me realmente feliz durante o tempo em estivemos juntas. ‘Felicidade se acha em horinhas de descuido’. Não serei mais a mesma depois de Das Neves, acredito ter ampliado ainda mais minhas perspectivas feministas. Não consegui retomar de pronto minha leitura, passei o restante dela pensando nas histórias ouvidas e de certa forma vivida. Chegando ao meu destino, já não era mais a mesma. Viajei.

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